José Gomes Ferreira, "Parece impossível mas sou uma nuvem" in O Mundo dos outros - 8º ano
Um grupo de sonhadores, de nariz no ar, contempla aquela nuvem – pobre
escrava branca de todos os ventos.
- Parece um cavalo de batalha – diz um.
- Qual! – protesta outro. – A mim dá-me a impressão duma cabeça de romano.
Só lhe falta falar latim.
Uma rapariga franze os lábios no desacordo lento de ruminar em voz alta:
- Cabeça de romano, não… Deixa-me examinar bem… Ah! Já sei! É uma ave…
Isso mesmo: um cisne. Lá está o pescoço. E as asas. Que elegância! Não vêem?
- Qual cisne, qual carapuça – acode outro. – A mim parece-me um anjo
vaporoso, leve, ténue, de asas suspensas…
Cada qual aspira reduzir a nuvem ao tamanho dos seus olhos. Este descobre
nela um elefante; aquele, um camelo no Deserto das Areias Azuis; estoutro, um
templo chinês…
Só eu num dia seco de imaginação continuo a ver apenas uma nuvem. Mas
para não fazer má figura, quando chega a minha vez de opinar, opto resolutamente
pelo hipopótamo:
- É tal qual um hipopótamo.
Enquanto com voz nítida e tenaz sustento o meu teimoso ponto de vista do
hipopótamo – por dentro, em contraponto, começa o outro mundo a fermentar.
Pela primeira vez, ato certas observações desligadas na aparência, dou-lhes
lógica e acabo por descobrir esta verdade, vestida duma imagem literária, mas nem
por isso menos verdadeira: Eu também sou uma nuvem. Uma nuvem de natureza
especial, evidentemente, de carne osso, com duas pernas, dois olhos, um baço, um
fígado e esta dorzinha de cabeça tão fina… Mas nem por isso menos nuvem do que
qualquer outra – sujeito à tirania de ventos semelhantes e ao mesmo destino vário de
não possuir um carácter de aceitação unânime.
Ninguém me vê do mesmo modo. Como a nuvem do céu – para alguns sou
águia; para muitos, burro; para este, um camelo; e para quase todos um animal
indefinido.
Cada qual agarra em mim a realidade que mais lhe convém. Há patetas que me
julgam engraçadíssimo e outros que choram tédio mal envesgam a minha cara longa
de gato-pingado. Horrorizo meia dúzia de pessoas com a minha má-criação, ao
mesmo tempo que fascino outra dúzia com a amenidade de açúcar do meu
temperamento. E depois de empolgar três ou quatro tolos com discursos inteligentes,
não me importo de exibir um solo de estupidez diante dum auditório de cretinos
espertos.
A única divergência entre mim e a nuvem é que o pobre farrapo de vapor de
água desliza pelo céu desprendido e alheio à opinião dos olhos dos homens… Mas eu
não. Eu colaboro.
Consciente ou inconscientemente, adapto-me às opiniões provisórias dos
outros. Entro nas mil comédias do ramerrão diário, sem me enganar nos papéis ou
confundir as personalidades.
Graças ao meu profundo talento de Proteu, nunca os palermas que me supõem
tímido assistiram a um rasgo de revolta da minha parte. Nem os que me consideram
abaixo da craveira normal puderam arrepender-se do seu juízo a respeito da minha
imbecilidade prevista.
Externato das Escravas do Sagrado Coração de Jesus
Ficha de Avaliação Sumativa nº3
Língua Portuguesa 8ºano
Raul Batista – Sebastião Ribeiro
Sou sempre o que eles querem: bom, mau, epiléptico, filósofo, íntegro,
puritano, devasso, pianista, sonâmbulo, tudo…
Só nunca fui uma coisa: eu próprio.
Mas esse é um dos muitos segredos que hei-de levar para a sepultura.
Entretanto por fora continuo a teimar:
- É um hipopótamo, já disse!
O mundo dos Outros, José Gomes Ferreira
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