O mês de outubro
é o mês internacional das bibliotecas escolares.
Parafraseando
José Jorge Letria, ler faz bem e os livros, além de abrir os horizontes, de
permitir viajar no tempo e no espaço, têm a particularidade de partilharem
connosco, pela vida fora, a magia da aventura e do saber.
Os alunos do 7º
C, no âmbito da disciplina de Português e do plano anual de atividades da BE e
do projeto A Ler +, participaram na atividade “ Ler na BE”, fazendo uma leitura
dramatizada do conto literário “ Ladino”, retirado da obra Os Bichos, de
Miguel Torga, escritor transmontano, autor da obra “ O Reino Maravilhoso de
Trás –os Montes, região que ele tão bem soube descrever como ninguém. Esta
leitura permitiu aos alunos tomar contacto com uma realidade rural, cultural e
linguística que, pouco a pouco, vai desaparecendo.
De salientar
nesta atividade a participação de uma encarregada de educação, Ana Correia, que
aceitou amavelmente o convite para participar na leitura dramatizada do texto.
O objetivo desta
iniciativa visa, assim, promover hábitos e o gosto pela leitura.
Salete Valente
No dia 29 de Outubro os alunos da professora Salete Valente encontraram-se com Ana Correia (encarregada de educação) na biblioteca MJA para ler o conto "Ladino" de Miguel Torga.Uma experiência a repetir.
Aqui está o texto:
Ladino de Miguel Torga
Grande bicho, aquele Ladino, o pardal! Tão manhoso, em toda a freguesia, só o padre
Gonçalo. Do seu tempo, já todos tinham andado. O piolho, o frio e o costelo não
poupavam ninguém. Salvo-seja ele, Ladino.
Mas como havia de lhe dar o lampo, se aquilo era uma cautela, um rigor!... E logo de
pequenino. Matulão, homem feito, e quem é que o fazia largar o ninho?! Uma semana
inteira em luta com a família. Erguia o gargalo, olhava, olhava, e - é o atiras dali
abaixo!... A mãe, coitada, bem o entusiasmava. A ver se o convencia, punha-se a fazer
folestrias à volta. E falava na coragem dos irmãos, uns heróis! Bom proveito! Ele é que
não queria saber de cantigas. Ninguém lhe podia garantir que as asas o aguentassem. É
que, francamente, não se tratava de brincadeira nenhuma!
Uma altura! Até a vista se lhe escurecia... O pai, danado, só argumentava às bicadas, a
picá-lo como se pica um boi. Pois sim! Ganhava muito com isso. Não saía, nem por um
decreto. E, de olho pisco, ali ficava no quente o dia inteiro, a dormitar. Pobre de quem
tinha de lho meter no bico...
Contudo, um dia lá se resolveu. Uma pessoa não se aguenta a papas toda a vida. Mas
não queiram saber... Quase que foi preciso um pára-quedas.
Mais tarde, quando recordava a cena, ainda se ria. E deliciava-se a descrever as
emoções que sentira. Arrepios, palpitações, tonturas, o rabinho tefe-tefe. E a ver as
coisas baças, desfocadas. Agoniado de todo! Valera-lhe a santa da mãe, que Deus haja.
- Abre as asas, rapaz, não tenhas medo! Força! De uma vez!
Tinha de ser. Fechou os olhos, alargou os braços, e atirou o corpo, num repelão... Com
mil diabos, parecia que o coração lhe saía pelos pés! Ar, então, viste-o.
Deu às barbatanas, aflito.
- Mãe!
Mas afinal não caía, nem o ar lhe faltava, nem coisíssima nenhuma. Ia descendo como
uma pena, graças aos amortecedores. Mais que fosse! No peito, uma frescura fina,
gostosa... Não há dúvida: voar era realmente agradável! E que bonito o mundo, em
baixo! Tudo a sorrir, claro e acolhedor...
2
A mãe, sempre vigilante e mestra no ofício, aconselhou-lhe então um bonito antes de
aterrar. Dar quatro remadas fundas, em cheio, e, depois, aproveitar o balanço com o
corpo em folha morta, ao sabor da aragem...
Assim fez. Os lambões dos irmãos nem repararam, brutos como animais! A mãe é que
disse sim senhor, com um sorriso dos dela...
E pousou. Muito ao de leve, delicadamente, pousou no meio daquela matulagem toda,
que se desunhava ao redor duma meda de centeio.
Terra! Pisava-a pela primeira vez! Qualquer coisa de mais áspero do que o veludo do
ninho, mas também quente e segura. Deu alguns passos ao acaso, a tirar das cócegas
nos dedos um prazer de que ainda tinha saudades. Depois, comeu. Comeu com fome e
com gula os grãos duros que o sol esbagoava das espigas cheias. Numa bicada
imprecisa, precipitada, foi a ver, engolira uma pedra. Não lhe fez mal nenhum. Pelo
contrário. Ricos tempos! Desde o entendimento ao estômago, estava tudo inocente,
puro. Fosse agora, e era indigestão pela certa. Arrombadinho de todo! Por isso fazia
aquela dieta rigorosa...
Falava assim, e ria-se, o maroto. Nem pejo tinha da mocidade, que o ouvia
deslumbrada.
- A vergonha é a mãe de todos os vícios - costumava dizer.
E tanto fazia a Ti Maria do Carmo pôr espantalho no painço, como não. Ladino, desde
que não lhe acenassem com convite para arrozada numa panela, aos saltinhos ia
enchendo a barriga. Depois, punha-se no fio do correio a ver jogar o fito, como quem
fuma um cigarro. Desmancha-prazeres, o filho da professora aproximava-se a
assobiar... Ah, mas isso é que não. Brincadeiras com fisgas, santa paciência. Ala! Dava
corda ao motor, e ó pernas! Numa salve-rainha, estava no Ribeiro de Anta. Aí, ao
menos, ninguém o afligia. Podia fartar-se em paz de sol e grainha.
- Que mais quer um homem?!
- O compadre lá sabe...
- Bem... Tudo é preciso... São necessidades da natureza... Desde que não se abuse...
E continuava, muito santanário, a catar o piolho. Depois, metia-se no banho.
- Rica areia tem aqui o cantoneiro, sim senhor!
D. Micas concordava. E só as Trindades o traziam ao beiral da Casa Grande.
Adormecia, então. E a sono solto, como um justo que era, passava a noite. Acordava
de madrugada, quando a manha rompia ao sinal de Tenório, o galo. Isto, no tempo
quente. Porque no frio, caramba!, ou usava duma táctica lá sua, ou morria gelado.
Aquelas noites da Campeã, no Janeiro, só pedras é que podiam aguentá-las. E chegavase
à chaminé. Com o bafo do fogão sempre a coisa fiava de outra maneira.
Ah, lá defender-se, sabia! A experiência para alguma coisa lhe havia de servir. Se via o
caso mal parado, até durante o dia punha o corpo no seguro. Bastava o vento soprar
da serra. Largava a comedoria, e - forro da cozinha! Não havia outro remédio. Tudo
menos uma pneumonia!
A classe tinha realmente um grande inimigo - o inverno. Mal o Dezembro começava, só
se ouviam lamúrias.
- Isto é que vai um ano, Ti Ladino!
A Cacilda, com filhos serôdios, e à rasca para os criar.
- Uma calamidade, realmente. Mas vocês não tomam juízo! É cada ninhada, que
parecem ratas!
- O destino quer assim...
- Lérias, mulher! O destino fazemo-lo nós...
Solteirão impenitente, tinha, no capítulo de saias, uma crónica de pôr os cabelos em
pé. Tudo lhe servia, novas, velhas, casadas ou solteiras. Mas, quando aparecia geração,
os outros é que eram sempre os pais da criança.
- Se todos fizessem como eu...
- Ora, como vossemecê!... Cala-te, boca. Mudemos de conversa, que é melhor... Segue-se
que não sei como lhes hei-de matar a fome... - gemia a desgraçada.
- Calculo a aflição que deve ser...
£ o farsante quase que chorava também. Quisesse ele, e a infeliz resolvia num abrir e
fechar de olhos a crise que a apavorava. Pois sim! Olha lá que o safado ensinasse como
se ia ao galinheiro comer os restos!... Enchia primeiro o papo e, depois, a palitar os
dentes, fazia coro com a pobreza.
- É o diabo... Este mundo está mal organizado...
Um monumento! Como ele, só mesmo o padre Gonçalo. Quanto maior era a miséria,
mais anediado andava.
- Aquilo é que tem um peito! Numas brasas, com uma pitada de sal...
Mas já Ladino ia na ponta da unha. Não queria quebrar os dentes de ninguém. Carne
encoirada, durásia... E acrescentava:
- Isto, se uma pessoa se descuida, quando vai a dar conta está feita em torresmos.
Que tempos!
O mais engraçado é que já falava assim há muitos anos, com um sebo sobre as
costelas, que nem cabrito desmamado.
De tal maneira, que o Papo Magro, farto daquela velhice e daquelas manhas, a certa
altura não pôde mais, e até foi malcriado.
- Quando é esse funeral, ti Ladino?
Mas o velho raposão, em vez de se dar por achado, respondeu muito a sério, como se
fizesse um exame de consciência:
- Olha, rapaz, se queres que te fale com toda a franqueza, só quando acabar o milho
em Trás-os-Montes.
Miguel Torga, in Os Bichos
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